terça-feira, 7 de agosto de 2012

Regresso do Nonato

        Tantos meses de volta a esse apartamento, tudo arrumadinho, um pouco de poeira, uma ou duas lâmpadas queimadas, uma descarga com defeito. Mas na chegada não foi assim. A limpeza do apartamento era tanta que, ao entrar, tive uma incontrolável vontade de lamber o chão. As lâmpadas queimadas eram tão belas, sem fios à mostra, tinham até um botão para ligar e desligar. Era só ir à venda da rua seguinte comprar outra lâmpada e botar no lugar das queimadas. IR À VENDA DA RUA SEGUINTE, tão simples que quase me faz chorar. E a descarga quebrada? Em nada se compara com aquele buraco onde urinávamos e defecávamos todos ao som dos costumeiros gritos "muita água nesse boi", "desce regando", "desce junto!", e onde colocávamos uma garrafa de coca cola cheia d'água para impedir que os ratos subissem.
      Tantos meses de volta, deixam a gente besta, fazem a gente pensar que nessa nossa vida alguma coisa é séria. A gente pára pra pensar em paixões cinematográficas, dramáticas, analisa cada frase e gesto do passado, tentando entender porque o amor não deu certo. Pensa que tem amigos. Pensa que o trabalho deve ser o complemento da alma, a felicidade total. Por onde será que entram essas idéias nesse apartamento? Deve ser pela TV...
      E aí vem a lembrança do que se passou. Uma simples sentença. "O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro lhe quer de volta em seus braços". Com essas palavras não é difícil lembrar aquela noite em que tudo o que eu queria era subir o Brasil como um indigente, deixar essa vida perseguida para trás. É fácil lembrar que os únicos amigos são o pai, a mãe, os irmãos, uma ou outra tia. E são essas as paixões também. Talvez inventemos outros amores porque os pais um dia devem morrer e o peito tem medo de frio. Pois lhe garanto, depois desse dia, o peito vive de frio, ainda que esse mimetise calor. E o trabalho, fiquem vocês com a felicidade do escritório, meu trabalho será pelo dinheiro.
      Tantos meses de volta a esse apartamento fazem a gente se acostumar a reclamar de coisa pouca. O café tem até ponto certo. Vê só, num dia a questão é "será que hoje tem café", ou "será que esse café tem café", de repente passa a ser "será que esse café está no ponto". E o café que agora bebo um pouco mais amargo do que o que me apraz me faz pensar que a liberdade é algo de que nada sabem os livres. Assim como de nada sabem da saúde os saudáveis, até que o doutor nos diz "meu filho, isso aqui ou é poeira no tomógrafo ou é um tumor no teu cérebro". Aí o saudável começa a sentir saudade da saúde: a saudade é póstuma. Aí o livre sente falta da simplicidade de ir comprar uma lâmpada na venda da rua seguinte.

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