terça-feira, 22 de maio de 2012

Velho Antônio


O velho Antônio já nasceu velho. Ele diz que não. Mentira! Conheci o velho há mais de vinte anos e ele já era velho. Mas ele contava que um dia foi menino, na terra distante das Barras. Na verdade, sempre achei as Barras perto, mais me pareciam distantes as capitais. Diz que menino aprendeu a viver o mato, a montar, caçar, comer macaxeira crua pra não morrer na beira do cerrado, dizer o que é macaxeira e o que é mandioca. Afinal, ele não queria morrer nem fazer farinha. Soube o nome de cada pé que dá no chão, e de cada ave que voa no céu. De cada céu. E aí viveu, viveu, viveu e depois conheceu Marenice. Cortou logo a conversa e a chamou de Maria, quando não Nega. Já não muito adepto das palavras, aprendeu o nome dos vários filhos. E aí parou, não aprendeu mais nome de ninguém. Os tantos netos eram o bodim, o furrequinha, o gordim, o galego, a neguinha, a cabritinha, o fião, o bito (andou perto de aprender Antônio Vitor, mas se recusou). Claro que o fião virava o furreca numa simples questão de momento.


Acorda de madrugada dizendo pra Nega ser meio dia, veste a calça de brim, veste a camisa de manga comprida, com aquele bolso feito pros cigarros, calça a japonesa, que com o tempo se chamou havaianas, veste o alforge com um pote de margarina cheio de frito de farinha d’água, uma garrafa d’água gelada que teimava em doer na testa de algum neto afoito, uma garrafa do melhor café da melhor Maria, veste o facão embainhado na cintura, desce a ladeira de piçarra, dá adeus ao mundo. Volta à noite com necessidade de pagar suas contas. Triste coincidência os credores sempre se acharem no rumo do bar do Xibiu.

Um dia o doutor lhe falou “largue o cigarro, tu morre”. “Morro não” e largou. Lhe disse “largue o café, tu morre”. “Morro não” e largou. Disse “largue a piga”. “Morro!”

Foi num forro pé-de-serra, que só tem esse nome pros novos, pra ele é só forró, ou farra, ou cana caiana, do lado do triangueiro, com os olhos lacrimosos não se sabe se de tristeza ou de Bhrama gelada vazando pelo ladrão que falou pro gordim (adepto da teoria da Bhrama, já que seu avô não chorava) “não te acompanho crescer”, disse o neto “acompanha”, “tu quer ver?”. E aí ele que tinha tantos anos, resolveu ter todos. Ficou preso no próprio corpo, se entregou ao catatonismo. O neto, sim, chorou ao ver aqueles olhos azuis como o céu da manhã por detrás dos coqueiros de Luís Oliveira presos ao corpo imóvel, feito dissesse “Nega, descuida de mim, me deixa ir”. A cabeça ainda guardaria as onças que o tio Chico matou? O burro correndo atrás de Chico Lira? O João Facundes, o João Caetano? A fábrica de sabão, o alambique, o sítio de laranjas? Manteve os olhos baixos, não olhou pro neto, pois não podia vê-lo crescer. Então o gordim lhe escutou o coração, o pulmão e lhe avaliou as sístoles e diástoles. E se foi dali sabendo que já não era do seu avô aquele coração batendo em heroico ritmo binário.

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